Introspecção de um pássaro


Olhava para o horizonte daquela forma vaga e enigmática, como quem vê o que lá não está ou busca o que não existe. O vento frio do crepúsculo acarinhava as minhas penas macias, nunca tocadas por uma mão humana. Eu não sei se sou pássaro ou árvore ou ar, sei apenas o que os meus antepassados me deixaram, implícito nos genes de que sou feito, explícito nos meus dias de automatismos e rotinas. Os meus olhos na verdade são vazios, guardo apenas o enigma de não saber quem sou, ou de onde vim. Guardo o enigma de não me lembrar dos meus pais ou dos meus irmãos, de ver-me igual a tantos outros e não me questionar acerca da minha individualidade. Não ambiciono grandes conquistas e o horizonte não é mais do que uma paisagem que admiro à derradeira luz de cada dia.

Desconheço a passagem do tempo. Sei que há sol e lua, sei que há tempo dos ninhos e depois tempo das grandes viagens. Reconheço o chamamento ancestral da minha espécie e sei que devo cumprir o desígnio dos que me antecederam. Não temo a morte nem o futuro porque não sei o que são.

Vejo às vezes aqueles assustadores seres de duas pernas, caminhando lentamente em vestes estranhas. Apenas sei que não são como eu, sei que os seus olhos são estranhos e sei que não seguem o prevísivel e incontornável ciclo da vida. Receio as suas figuras grotescas quando se aproximam. Desdenho-os porque não têm asas e porque não respeitam as leis da Natureza.

Sou apenas qualquer coisa viva. Sinto o meu corpo quente e o coração palpitante. Sei que tenho uma pequena grande missão na minha efémera vida. Sei mas não me preocupo. Voo quando está sol e adormeço quando está escuro. De tudo o resto, não sei nada.

5 comentários:

Ana disse...

:) às vezes apetecia-me ser como esse pássaro...

Sandra disse...

nao consigo deixar de pensar nos pombos barulhentos da bib de letras....
o estudo ja está a causar alguns danos..

Jotomicron disse...

:| Quem diria que um pássara tinha tanto para dizer? Quem diria ser possível por-se na pele de um pássaro, de forma tão subtil, tão imperceptível?

Está muito perspicaz, muito sentido! Na verdade, está mesmo bonito! =)

sofia disse...

É a vida secreta dos pássaros :)

Passam algum tempo a divagar acerca das limitações (ou não) inerentes à sua vida de pássaros...

sofia disse...

Hum... escrevi "vida" e "pássaros" duas vezes naquele minúsculo comentário... Estou com carência vocabular lol