O que podia ter sido

Às vezes não entendo o que ela procura.

Naquela noite despediu-se de todos mesmo sabendo que a madrugada a encontraria ainda desperta. Agarrou o tecido grosseiro com uma força que nunca pensou ter e concentrou-se em colocar toda a raiva na ponta dos dedos, nos ásperos fios de lã grossa, até que as articulações gritassem de dor. Não importava. Desde que a dor física fosse superior às dúvidas que a assolavam, ao sabor amargo da frustração, à necessidade dolorosa de se manter firme e sorridente frente a todos ainda que por dentro uma chama recente a consumisse sem remorsos.

Não verteu uma lágrima. O impacto das coisas nunca ditas era muito mais profundo e visceral do que isso. Se alguém estivesse acordado àquela hora tardia tê-la-ia visto caminhar até à porta de correr e sair para o frio gélido com a convicção inabalável das almas que sofrem. Teria sem dúvida admirado o seu vulto curvilíneo e frágil recortado nas luzes amarelas e tristes dos candeeiros da rua. Ter-se-ia questionado sobre quem seria aquela bela e decadente criatura e o que faria envergando uma camisa de dormir de Verão na madrugada fria. Ter-se-iam escrito lindos poemas sobre a forma como se movia descalça na calçada irregular. Se alguém algum dia a tivesse visto.

Sentia as mãos latejantes de dor mas segurava ainda, de forma relutante, o pedaço de tecido rude e escuro. Por fim, cedendo à incómoda descida de temperatura, embrulhou-se nele como num velho amigo e deixou que o calor lhe aliviasse a penosa caminhada.

Chegada à zona mais sombria da rua olhou em volta, sem medo daquilo que ia encontrar. O vulto acenou-lhe com um gesto rápido mas determinado, uma das mãos apoiada na ombreira da porta e a outra equilibrando entre os dedos um cigarro quase extinto. Ela aproximou-se e abraçou-o, afastando-se depois um pouco para respirar o ar frio da noite. O fumo do tabaco ainda a incomodava.

Ela sabia bem que ele ia passar a noite naquele degrau gelado e por isso estendeu o pedaço de tecido no chão com a doçura com que estenderia um lençol de seda. Os ombros nus tremeram por estarem de novo descobertos e vulneráveis. Deitou-se, sempre em silêncio, e esperou pacientemente que ele terminasse o cigarro.

Alguns minutos depois ele sentou-se no degrau, aconchegando entre as suas mãos calejadas os pés descalços dela e perguntou numa voz que quase se sumiu com o vento

"Hoje vieste dormir com o mendigo?"

"Não" - respondeu ela num sorriso triste - "Hoje vim dormir contigo."

Sem comentários: