Histórias - Capítulo I




Um dia sentou-se Deus à beira do lago e juntou entre as mãos um punhado de argila húmida. Pensou uns minutos e formou na mente a imagem do ser frágil que surgiria dos seus dedos de artesão.

Para dizer a verdade, não sei se este pensamento era inédito, muito menos sei se este punhado de barro era muito do diferente do anterior ou do que o seguiu. Sei apenas isto que aqui vos conto porque mo deixaram escrito numa das paredes da Alma, naquela oposta às duas janelinhas, para que o pudesse ler vezes sem conta, assim que o dia clareasse.

Quis então Deus que a figura de barro tivesse em si um pequeno quarto a que chamou Alma, por onde entrassem e ficassem todas as coisas vistas, sentidas, percebidas e assimiladas através das duas janelinhas. No quarto quis Deus que vivesse, enquanto o coração não se cansasse de bater, uma menina, cuja única função era recolher todas as informações que chegassem e trabalhá-las para que dessem um significado à vida da figurinha de barro, desde o primeiro choro ao último suspiro.
Para que tudo corresse bem, a menina devia trabalhar arduamente, sem descanso, empilhando folhas de informação com uma perfeição inabalável. Mesmo à noite, quando lá fora todas as figurinhas de barro dormiam, a menina sentava-se num dos cantos do pequeno quarto e planeava metodicamente o dia seguinte.
Às vezes o cansaço era tão avassalador que a menina tentava em vão fechar os olhos e não pensar em nada, mas não conseguia. Ainda assim, se se esforçasse muito, dos olhinhos tristes escorriam gotas de água morna que ela nunca soube o que significavam.

Uma ou duas vezes por semana, olhava através das janelinhas lá para fora e sorria ao ver que a sua figurinha de barro parecia ser feliz, caminhando ordeiramente ao lado das outras figurinhas de barro, tal como fora programada para fazer.

E é assim que me recordo dela. As mãozinhas espalmadas no vidro da janela, os olhos muito abertos, límpidos e ingénuos, para sempre condenada a viver num quartinho sem portas, por um Deus que nunca soube quem era.

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