Eu e uma madrugada qualquer

As músicas...
Deste-me as alegres mas eu ouço as outras.

Acho que vou sempre ouvir as outras...

E queria ser especial assim, lágrima ao canto do olho, coração perto da boca, a pensar no impossível como mais um dia no longo caminho.

Já sabes.

Histórias - Capítulo IV

Novembro parece estar quase no fim.
Mas o dia em que tudo devia ter terminado foi, afinal, o dia em que tudo começou.
Eu saí de casa e chovia copiosamente.
 O chapéu de chuva vermelho, vergastado pelo vento, não devia ter saído comigo nesse dia. Voou e morreu à frente dos meus olhos, as varetas incrivelmente torcidas e o escarlate rasgado na lama.
Aconcheguei-me ao casaco e continuei, em direcção ao abismo onde tinha caído dias antes. Desta vez tentei não tremer, apesar do frio cortante. Medi mentalmente os largos metros de queda e recortei na memória o contorno das rochas. Quis fazê-lo sem dor mas a verdade é que cada minuto daquele passeio me trouxe de volta o sabor a sangue na boca e o atrito doloroso dos grãos de areia na cara.
Agora és tu que te vais embora na viagem já planeada, a ausência que eu já conhecia e que ainda assim me dói no peito. Aquele risco branco que vejo no céu, agora que a chuva fez uma milagrosa trégua, serás talvez tu, de partida, deixando para trás um rasto que eu já via dentro de mim.
E lembro-me assim de ti, nestes gélidos minutos de Outono, segurando um botão de rosa na mão fechada para que ninguém veja, deixando cair de quando em vez uma pétala no caminho - "Eu não sou destas coisas, sabes?". E eu sorrio por dentro enquanto aperto a pequena raridade contra a minha cara.
"You can't always get what you want 
But if you try sometimes you just might find 
You get what you need"

Está frio, meu amor, não acordes

Está frio, meu amor,
Não acordes.
Não reconheças ninguém

No medo escuro da noite.
Por mais que te peçam,
Que a vontade te açoite,
Torna a dormir,

Aconchegado.
Não acordes.

Queria eu ter um abraço quente,
Envolver-te todo e sempre,

Mas sou tão pequena...
Queria eu dar passos de gigante,
Ser amor, amada, amante,
Mas sou tão pequena...
Queria eu dar-me toda e tudo
Mas sempre que mudo
Continuo pequena.

Ainda é noite, meu amor,
Não acordes.
Dá tempo, quando o sol raiar,
De te agasalhares bem,
De te encontrares contigo na esquina
No café, nas pessoas,
Nas coisas que amas, nas coisas boas.

E perguntares se vale a pena
Acordares de noite naquele abraço:
No meu, que sou pequena.

As minhas verdades fluorescentes

Ainda hoje tenho medo do escuro.

Já não preciso de luz de presença nem de deixar a porta entreaberta.

Já não creio que se esconda alguém debaixo da cama ou que os vultos da cadeira e da estante sejam monstros à espera de um momento para me roubarem os sonhos felizes.

Mas no escuro as coisas mudam de aparência, surgem de outra forma. Acho que algumas verdades são fluorescentes.

O sol da tarde e as minhas meias



Abençoados borbotos e traços coloridos que me desintoxicam a tarde.

Conversa, sorri, não te queixes

Enfim, acho que já não há paciência para lamentações, já não há tempo para arrependimentos, para desenhar cenários hipotéticos, rever opções menos felizes ou boicotar por pânico tudo o que foi feito.
A experiência já me tinha demonstrado que os nossos problemas cansam os outros. Sim, cansam. Bater na mesma tecla uma e outra vez, por mais que seja uma tecla legítima, faz doer o ouvido de quem está à volta. Por isso interditei essa tecla do meu piano. Fui imperativa, tal como quando pus o meu urso de peluche a segurar um papelucho que diz ESTUDA! ou quando colei um post-it na base do candeeiro de mesa a dizer LEMBRA-TE!.

No final tudo se resume ao que se passa cá dentro, no íntimo de cada um. É uma perda de tempo debater aquilo que não tem debate, lançar para o ar frases de dor esperando que à milésima vez algum ser divino grite de volta com a resposta. 
O ser divino não vai responder. Os seres terrenos podem até responder, mas provavelmente com desânimo, enfado ou impotência.

O silêncio é talvez o recurso de comunicação mais poderoso que existe.
Comecei e não terminarei até aprender a usá-lo com toda a mestria.

Noite


No fundo da página as pontas dos meus dedos desenhadas.
No céu o meu auto-retrato em letras, a ideia escrita em linhas tortas a captar o realismo dos dias vividos.
No centro a Lua.
Ao fundo o continente, como é visto da ilha, vultos ondulados, interrompidos nas margens da folha sem que se saiba, jamais, até onde vão.

Verão


Molhei o pé na espuma, o vestido atado num nó grosseiro acima da coxa, os últimos grãos de areia daquela semana perfeita a ficarem para trás à medida que me afastava da beirinha do mar.
Gosto das pegadas na areia húmida. Ensinaste-me que era mais fácil andar se colocasse as minhas por cima das de alguém que por ali tivesse passado antes. Eu assim fiz e cheguei mais longe, mais depressa.
Desenho mal e de memória por isso vão todos perdoar-me a falta de pormenores, a fraca noção de perspectiva e o facto de ter manipulado caprichosamente os elementos da paisagem e os protagonistas do momento.

E a sensação que me fica no final é que é difícil pisar o areal já pisado, viver de forma diferente o que já foi vivido, esperar que seja único aquilo que se repete. O tempo não volta para trás. É bom ser o primeiro. Eu ambiciono apenas ser a última.