O sonho

Sonho (ô)
(latim somnium, -ii)
s. m.
1. Conjunto de ideias e de imagens que se apresentam ao espírito durante o sono.
2. Fig. Utopia; imaginação sem fundamento; fantasia; devaneio; ilusão; felicidade; que dura pouco; esperanças vãs; ideias quiméricas.
3. Culin. Bolo muito fofo, de farinha e ovos, frito e depois geralmente passado por calda de açúcar ou polvilhado com açúcar e canela.


Sonhei que estava sentada numa rua deserta e inclinada, os paralelos irregulares do chão impregnados da humidade da noite a cortarem as suas arestas nas minhas pernas desprotegidas.

Olhei de relance para mim. A saia um pouco acima do joelho, camadas sucessivas de folhos rendilhados, uns collants exemplares e uns sapatinhos de menina colegial do século passado que me apertavam os pés. A camisa de cetim com bolinhas, cintada e harmoniosa, cujas mangas se alargavam ligeiramente nas pontas dava-me um ar pitoresco, deslocado no tempo, qualquer que ele fosse.

Levantei-me a custo com as mãos apoiadas na parede rugosa e sujei as palmas de cinza de cigarro. Praguejei qualquer coisa e o eco atingiu-me de volta, a testemunhar o vazio geométrico da rua estreita.

Os óculos escorregavam-me da cara a cada passo, como se fossem grandes demais para mim. Dobrei a esquina à direita com a esperança de que algum elemento me revelasse onde estava e como regressar a casa. As minhas pernas estremeceram quando vi um vulto feminino no final dessa ruazinha e apressei-me a percorrê-la.

A rapariga viu-me chegar, uma expressão vazia que não consegui decifrar, e não pronunciou uma palavra. Então eu tomei a iniciativa: "Olá. Podes dizer-me onde estamos?". Ela sorriu, um esgar de condescendência e ironia, e respondeu "Estás onde não devias estar. Não é de mulheres que eu ando à procura!". Dei um passo atrás e os estúpidos óculos voltaram a descair para a ponta do nariz. Agarrei-os e de um só golpe atirei-os para o lado com toda a força. A rapariga não se mexeu enquanto as lentes se estilhaçavam na parede de pedra e as hastes deformadas caiam, inertes, no chão cheio de beatas e copos vazios.

Corri sem parar, cruzei essa rua, e outra, e outra, os pés latejantes de dor e um frio cortante nas pernas. Ao fim de um tempo infinito as pernas deixaram de obedecer e caí de joelhos nas pedras ásperas. Um fio de sangue correu rua abaixo, mas eu não senti dor. O olhos fecharam-se e eu deixei-me tombar gentilmente no chão, sem medo do que ia acontecer a seguir. No sonho dentro do sonho, estava a dançar no salão de um palácio, ao ritmo das ondas do mar. 

Foi então que alguém me pegou na mão gelada e disse qualquer coisa. Regressei à rua, agora cheia de gente e de sons, as minhas jeans e a camisola azul básica incólumes, uma leve sensação de náusea.
"Ouviste?" - disse ele com gentileza. "Estás a ficar cansada, vamos embora."
Concordei com um aceno e percorremos de mão dada a rua íngreme.

E depois acordei.
 

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