O dia das horas mortas

E quando o dia é feito de horas mortas?

Os últimos suspiros de alguém, as últimas recordações, os derradeiros arrependimentos, a reconciliação final com o Criador, quem quer que ele seja.
Quando a tua mão é a última a ser apertada, quando recebes o afecto do desespero, que te marcará para sempre. E ainda mais quando a despedida é um até já de longos anos, uma mão que te vai esperar algures no sítio para onde vão as almas, imutável, com as rugas do momento da morte, ou talvez diferente, com a delicadeza da juventude distante.

E eu fecho as páginas do processo, o resumo de uma vida em duas páginas, porque quis transferi-la para uma mortalha diferente, aquela que ela me pediu. Não sei sequer se lá chegou. Arrumei o meu cacifo e fui para casa. Já as despedidas tinham sido feitas e as últimas recomendações dadas. O meu até breve pouco sincero desabou na ausência de expectativas dos olhos dela, revirados já, a respiração profunda, o pedido que fez enquanto me afastava - "alguém que me ajude a deitar, quero fechar os olhos, quero que isto acabe, já vivi demais".

Ainda não decidi se quero saber o que se seguiu. Enquanto conduzia, no forno das duas da tarde, a minha revolta era anestesiada pela desidratação. Se calhar deixo-me ficar assim, na ignorância do momento da morte, podendo por isso idealizá-lo na minha mente.

Assinei o relatório e fechei o dossier azul, descrevi exaustivamente muitas coisas que fiz, outras que não fiz, que não quis fazer, que não sei porque se fizeram... Atiraram-me o fardo e eu fiz dele a missão. E agora a missão terminou.

Durmam bem. Façam o melhor possível todos os dias porque no final, quando só restarem os lençóis tristes do hospital e o ressonar pausado do doente do lado, é isso que vai povoar a vossa memória.

1 comentário:

Sandra disse...

nao acredito que nao queiras saber o que aconteceu a seguir. Preocupa-te. Apesar de não ser "bom" para nós, é essencial que nos preocupemos. é isso que faz de nós Médicos, e não seres que empinaram medicina.