Histórias - Capítulo V

"Invadia-me uma náusea de te ver assim, cego pelas circunstâncias, mal aconselhado, completamente perdido com um mapa na mão.
O cansaço preenchia-me de uma forma absurda, impossível, vinha de dentro e espalhava-se por todo o lado, tentáculos opressores que quase me impediam de mover.
Ainda assim saí de casa, lábios pintados, sombra preta nos olhos, o primeiro vestido do armário que me pareceu adequado para um jantar com uma vela, dois cálices de vinho e nenhuma expectativa. Disse que não ia fazê-lo mas isso, agora, pouco interessa.
- São só umas horinhas para constatar o óbvio, mal não faz - pensei eu, enquanto o carro começava a trabalhar e os vidros desembaciavam. Esforçava-me por me manter serena mas a minha imaginação fugia para ti: as mãos frias no volante, a lua em barco pregada no céu, a música na rádio, eram engodos para o meu cérebro incauto, dominado ainda pela tua presença.
Estacionei. Não me lembro como. Estava demasiado entretida a avaliar a real probabilidade daquela noite se transformar num verdadeiro desastre. 
Ele já estava à porta do restaurante, alto e discreto, casaco comprido escuro e um sorriso cativante. Dois beijinhos e um olá grave tranquilizaram-me.
- Talvez isto não corra assim tão mal - concluí.
A comida era boa e o vinho suave, os minutos passaram numa conversa simples e agradável sobre viagens, amigos comuns, tempos de escola e hobbies. Na fotografia mental daqueles momentos vejo-me tranquila e confiante. Nem um flash de ti durante horas a fio.
Depois da conta saímos sorridentes para o exterior, o frio gélido da noite a convidar insistentemente a procura de um abrigo quente. Seguimos esse convite irresistível da meteorologia e entrámos no bar em frente. Canapés largos e acolchoados e um cartaz grande da Audrey Hepburn na parede compunham um ambiente agradável. Por inúmeras vezes ele tocou "casualmente" na minha mão e o sorriso estava mais largo, de uma sinceridade desarmante.
Por uns minutos a sensação de que a vida ia continuar sem mácula preencheu a minha mente e eu acreditei naquilo que, há meia dúzia de horas atrás, julgava impossível.
Quando finalmente saímos gerou-se aquele familiar clima de tensão.
- E agora? - pensei. A frase seguinte era determinante, analisei rapidamente a situação e disse, com serenidade:
- Gostei muito mas faz-se tarde e amanhã é dia de trabalho. O meu carrinho está ali, sozinho na noite, a precisar que eu o leve de volta para um ambiente familiar e os meus pés estão cansados destas maravilhosas armadilhas a que chamam sapatos de salto alto.
Ele sorriu, pensamentos agora indecifráveis. Não percebi se estava desiludido ou acomodado com o rumo das coisas. Manteve admiravelmente a postura de cavalheiro e acompanhou-me até ao carro enquanto sugeria um próximo encontro para "um destes dias".
- Claro - disse eu, sorridente, no fundo a lamentar não ser capaz de sentir aquilo com um entusiasmo gritante.
Liguei o motor e a noite voltou a fechar-se. A estrada abria-se ampla para mim e eu imaginava-me assim, pequeno insecto num universo enorme, completamente esmagada por aquela lua branca e solitária que pingava memórias de ti."

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